terça-feira, 10 de março de 2009

Da fria lei ao encontro com o olhar da vítima

Da fria lei ao encontro com o olhar da vítima
Antonio Carlos Ribeiro (jornalista e pastor)
O caso da interrupção da gravidez da menina de nove anos em Recife cria a oportunidade para debater o limite da moral diante da ética e o confronto da theologia gloriae com a theologiae crucis.
A moral é baseada em costumes, associada a práticas aceitas por uma comunidade, transformadas em normas últimas pelo tribunal autoritário do senso comum e brandidas pelos governos. Inclusive os ditos espirituais. Um caso recente foi a pífia defesa da manutenção do sofrimento de Eluana Englaro, por Berlusconi.


Já a ética, que é eminentemente laica, lembrou o filósofo Massimo Cacciari, não se entrega a afirmações abstratas, mas enfrenta situações precisas e historicamente determinadas.
Constatada a violência sexual, praticada há três anos pelo padrasto da menina, chegou-se ao dilema humano, enunciado como sentença pelo médico Thomaz Rafael Gollop, livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP): o útero infantil tem em média um terço do volume do adulto. Trata-se da gravidez de gêmeos. Poderia ocorrer a ruptura uterina.

O presidente da Comissão Nacional de Violência Sexual da Federação de Ginecologia e Obstetrícia, Cristião Rosas, disse que a gestação de gêmeos sobrecarrega o músculo cardíaco, pelo aumento do volume de sangue circulante. "Essa sobrecarga pode ser fatal quando a gestante é uma criança", assinalou.

Além dos diagnósticos especializados, surge o depoimento de Rivaldo Mendes de Albuquerque, médico e professor de ciências médicas da Universidade Estadual de Pernambuco, um dos profissionais que tomou parte da interrupção da gestação na criança.

Católico praticante, ele vai à missa todo domingo para pedir "luz e compreensão". Diante desse trágico quadro, assumiu o risco da excomunhão da igreja e da plena comunhão com a humanidade, diante da qual fez outro diagnóstico definitivo, só que teológico: "Tenho pena do nosso arcebispo, que não conseguiu ser misericordioso com o sofrimento de uma criança inocente, desnutrida, franzina, em risco de vida, que sofre violência desde os seus seis anos". A ética do médico impõe-se diante da moral do funcionário do sagrado. Sem tempo para raciocínios abstratos e nem cativo da visão do Cristo glorificado – em vestes da realeza, cercado de anjos e à direita do Pai – esse profissional da saúde desdobra-se em sua busca, no trato cotidiano com gente simples e pobre.

Ele já tinha sido excomungado “quando o serviço de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual da Universidade Estadual de Pernambuco foi inaugurado, em 1996”, pelo mesmo arcebispo. Nutrido da comunhão humana, não alterou a rotina e nem o cuidado dedicado às vítimas. Confrontado com sua pertença a uma instituição religiosa que proíbe a interrupção da gestação em qualquer caso, o médico cotejou a moral com a ética:
“Quando comecei a trabalhar neste programa, conversei com minha mãe, então com 80 anos, católica praticante. Perguntei se me condenaria por interromper a gestação de mulheres estupradas. Ela me disse que não. Que, se fosse com ela, gostaria de encontrar um médico compassivo com sua situação. A mesma pergunta fiz à minha mulher - mesma resposta. Tenho duas filhas. O que faço por outras mulheres é o que eu gostaria que fizessem pelos meus entes queridos, se com eles ocorresse uma tragédia dessas”. Mais próximo do que Lutero chamou de theologia crucis, o médico não fugiu a seu ofício e nem deliciou-se nos salamaleques sagrados. Ele manteve o olhar no rosto da vítima, sem desviá-lo e nem deixá-lo perder-se em brumas de arrazoados jurídicos disfarçados de teologia.

Mais próximo do Reino, ele seguiu o conselho de Levinas, sem descompromissar-se com o olhar sofrido da criança, “típica vítima da miséria. A mãe pensava que a barriga era decorrência de vermes, por isso não tomou providências antes. É uma criança desnutrida, que ainda brinca com boneca”. Seu serviço médico salvou-lhe a vida. Diferente do religioso – que sequer dirigiu uma palavra pastoral à família, ateve-se à praxe de procurar o reitor da universidade, e brandir a excomunhão, sem encontrar quem a temesse.

O médico lembrou que o setor não recebe “um único centavo a mais para fazer esse tipo de intervenção. Fazemos pelo respeito que uma mulher vítima de violência merece, e que o arcebispo, infelizmente, trata sem nenhuma misericórdia”. E disparou, certeiro e definitivo: “Falta-lhe coração”. O cura d’almas não tem alma. Típica parábola do bom samaritano em linguagem e contexto modernos, faltou fazer a pergunta de Jesus ao mestre da lei: Quem foi o próximo daquela menina? Um ser humano na função de médico.

Se o religioso não se deixar interpelar pelo evangelho, logo começa a fazer sentido o conselho do cantor Zé Geraldo, na letra de O pastor e o rebanho: “Ó pastor, se não tens capacidade de cuidar desse rebanho sem maldade, deixe que entre outro pastor em seu lugar!
Publicado no Jornal alcnoticias de Maceio.

Fico pensando se Jesus estivesse presente nessa situação O Que Jesus Faria?

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