Identidade e Missão da Igreja Evangélica Brasileira em 2040
por Paul Freston
A Aliança Cristã Evangélica Brasileira (ACEB) tem enfatizado os temas “unidade, identidade e missão”. Quero pensar brevemente nos temas “identidade” e “missão”, à luz do provável futuro da igreja.
Saiu recentemente nos jornais o resultado de uma pesquisa do IBGE com dados interessantes sobre a realidade evangélica. A categoria evangélica que mais cresce é o ‘evangélico sem igreja’. Mas a maior parte dessa categoria não é de evangélicos ‘nominais’ (que não frequentam igreja), mas de pessoas que não se identificam com esta ou aquela denominação. Talvez frequentem várias igrejas sem se definir por uma. Existe, então, um setor crescente de pessoas que se identificam como evangélicas mas não como sendo de uma determinada denominação.
Mas há outra tendência que logo vai aparecer. As pesquisas recentes indicam que a porcentagem de evangélicos continua crescendo. Não no ritmo altíssimo dos anos 90, mas voltando ao ritmo que caracterizou as décadas anteriores. Mas um dia vai parar de crescer. Digo isto, não por “falta de fé” mas porque as tendências indicam que o fim do crescimento pode não estar distante. De cada duas pessoas que deixam de se considerar católicas, apenas uma (e pouco) passa a se considerar evangélica. Além disso, a Igreja Católica não vai continuar perdendo gente para sempre. Há formas de catolicismo (como a Renovação Carismática) que arrebanham muitas pessoas. Pelas tendências atuais, vai ser muito difícil que os evangélicos (hoje talvez uns 20%) passem de 35% da população.
Logo passaremos, então, a uma nova fase da existência evangélica no Brasil. Estamos desde os anos 50 na fase do crescimento rápido, o que significa que a igreja média tem pouca gente que nasceu evangélica mas muita gente que se converteu, inclusive recentemente. Quando terminar essa fase (provavelmente nas próximas duas ou três décadas), haverá outro perfil: mais gente que ‘nasceu na igreja’ e menos gente que acabou de se converter. Com isso, mudará o perfil de liderança eclesiástica exigida. O crescimento rápido privilegia o líder capaz de atrair membros novos.
Sempre haverá espaço para esse tipo de líder mas, com a estabilização numérica, haverá mais espaço também para outras modalidades. Não devemos ter uma linha de montagem de líderes; precisamos de uma variedade de ministérios, uma variedade de tipos de líder.
Por que no futuro isso será ainda mais importante? Porque quando as igrejas crescem muito, a exigência é mais para fazer bem o bê-a-bá, porque há sempre gente nova chegando. Mas quando há uma comunidade mais estabilizada, com mais pessoas com muito tempo de vivência evangélica, outras exigências ganham força. Como desenvolver a vida cristã? O que significa ser discípulo em todas as dimensões da vida? O que a fé evangélica tem a dizer sobre tais e tais questões? Haverá, então, mais exigência por um ensino variado, e por pessoas que saibam falar para a sociedade em nome da fé evangélica. Precisaremos de gente preparada nas mais diversas áreas de interface com a sociedade; portanto, necessitaremos ministérios cada vez mais diversificados. Esse tipo de líder não aparece da noite para o dia; a formação leva tempo. O carisma e o auto-didatismo não bastam nesses casos.
Além disso, ganhará importância a questão da transparência. Além de demanda do evangelho, esperamos que o Brasil de 2040 tenha uma democracia mais transparente. Os líderes evangélicos do futuro terão que ter vidas pessoais capazes de ser examinadas. Uma liderança mais exposta e vulnerável será exigida. Mas o que produz esse tipo de líder não são as técnicas, mas um processo profundo de formação pessoal, que leva tempo.
Se não houver pessoas à altura, é possível que, quando terminar o crescimento rápido, em vez de uma comunidade estabilizada durante gerações e tendo um efeito benéfico no país, haja logo um decréscimo na porcentagem de evangélicos. Aliás, se não nos prepararmos hoje para os desafios de amanhã, a probabilidade é que esse declínio aconteça.
Portanto, o primeiro grande desafio de hoje em função do futuro é a formação de líderes com ministérios diversos mas sempre humildes e com vidas transparentes. E o segundo desafio é a recuperação da Bíblia. A identidade evangélica não deve estar ligada meramente a uma tradição que se chama evangélica. Pelo contrário, ser evangélico significa a vontade de ser verdadeiramente bíblico, em todas as dimensões da vida com Cristo. Mas perdemos muito o sentido de ser bíblico
ultimamente. É muito raro ouvir sermões realmente embasados na Bíblia, que deixem o texto falar para depois fazer as aplicações para a nossa vida pessoal, comunitária e social. Esse tipo de mensagem necessita formacão, preparo, pensamento, meditação. E, na fase atual do crescimento rápido, é mais fácil apenas se preocupar em ter igreja cheia.
No futuro próximo, porém, esse enfoque será mais necessário. Se não recuperarmos a capacidade de deixar o texto bíblico falar e a partir disso tirar as implicações individuais, eclesiásticas e nacionais, seremos irrelevantes. Mas essa capacidade é outra coisa que não se constrói da noite para o dia. É necessário exigir que nossos líderes ensinem a Bíblia, interagindo profundamente com o texto bíblico. Mas o bom ensino na igreja precisa ser complementado pela leitura individual, comprando mais livros que nos embasem biblicamente.
O processo, portanto, tem que começar com os membros comuns, exigindo uma qualidade melhor de ensino e literatura. Porque a nova liderança para fazer frente aos desafios de 2040 só surgirá se houver uma demanda articulada a partir dos membros.
Nessa recuperação da Bíblia, insisto na centralidade dos Evangelhos. Muitas vezes se comenta que a fé evangélica se tornou prisioneira da “cultura religiosa da barganha”. Ora, a melhor maneira de combater a cultura da barganha não é apenas criar a dedicação abnegada a causas cristãs. Antes, é o encantamento com a humildade amorosa da figura humana de Cristo retratada nos quatro Evangelhos. O melhor antídoto para a cultura da barganha é o fascínio com a figura de Cristo, criado pelo estudo sério dos Evangelhos.
A igreja evangélica brasileira de 2040 precisará, portanto, de líderes mais diversos nos seus dons, profundos no seu conhecimento e sabedoria, e transparentes nas suas vidas; e precisará ter redescoberto o verdadeiro sentido de ser evangélico, que é a vontade de ser profundamente bíblico. E esses dois requisitos somente existirão se a igreja de hoje (com a ACEB à frente!) tomar as medidas necessárias.